"Havia um Alemão que namorava uma
Portuguesa. Ele não falava Português. Ela não falava Alemão. Mas, fora isso,
entendiam-se bastante bem.
O Alemão vivia na Alemanha e a
Portuguesa vivia em Portugal. O Alemão era criteriosamente dedicado ao seu
trabalho, aliás como dizem ser os Alemães. A Portuguesa não tinha dinheiro para
viagens, aliás como dizem não ter os Portugueses. Ele não tinha tempo para
visitá-la, ela não tinha meios. Fora isso, entendiam-se bastante bem.
O Alemão não apreciava receber
cartas, que defendia serem um subproduto cultural obsoleto numa era às portas
da extinção do papel. À Portuguesa não lhe agradavam telefones, pois
pareciam-lhe aproximações perigosamente fálicas para se encostar à boca. Nenhum
dos dois gostava de computadores. Utilizavam-nos somente para efeitos de
pesquisa académica (ele) e compras online (ela). Mas apesar de não recorrerem a
cartas, telefonemas ou e-mails, entendiam-se bastante bem.
O Alemão não apreciava a comida
mediterrânica. Enjoava com o cheiro a azeite e a sua frágil compleição era
pouco prestável a qualquer prato que não aqueles que a sua própria mãe
cozinhava. A Portuguesa era vegetariana e não consumia álcool, o que excluía
desde logo tanto a salsicharia como a cervejaria tão queridas ao povo Alemão.
Fora isso, entendiam-se bem.
O Alemão era, como dizem que são
os Alemães, de trato distante. Ou “frio”. Como se o clima dos países do Norte
os contaminasse para lá da epiderme. A Portuguesa era, por seu lado, barulhenta
e fervorosa. Como se o calor nos países a Sul lhes aquecesse o sangue e os tornasse
a todos turbulentos. Aparte a altitude sónica dela e a escassez expressiva
dele, davam-se mesmo bem.
O Alemão era matinal e acordava
com as galinhas. Apesar de ser totalmente urbano e a galinha mais próxima estar
frita num KFC. A Portuguesa, por seu turno, vivia para as suas jantaradas, em
família ou com amigos, que nunca começavam antes das dez da noite, e se estendiam
madrugada fora. No dia seguinte era raro vê-la a pé antes do início da tarde.
Mas não era por nunca estarem acordados à mesma altura do dia que se iriam dar
pior.
Certo verão, o Alemão foi
obrigado a tirar férias. Ainda não tinha gozado qualquer período de férias desde
que entrara naquele departamento, e os seus superiores começavam a estranhar.
Perguntavam-lhe sobre a FaMíliA, se nÃo peNsaVa CasAr — que já estava Na AltUra
(os Alemães usam letras maiúsculas nos sítios mais estranhos). Ele mostrou uma
foto da bela Portuguesa, e contou como se davam tão bem. Nunca tinham tido
problemas um com o outro. Os seus superiores sugeriram que tirasse férias para
a ver, porque havia uma regra qualquer sobre o número de dias de férias, e eles
queriam cumprir as regras.
Nesse verão, o Alemão que
namorava uma Portuguesa viajou até Portugal. Procurou a Portuguesa nos sítios
que lhe pareceram mais apropriados: os anfiteatros, as bibliotecas, mas não lhe
ocorreu que era mais provável ela estar na praia, na esplanada, ou ainda a dormir.
Tentou ligar-lhe, mas ela não
atendeu. Perguntou aos transeuntes, com a sua foto em punho, se a tinham visto
passar.
Mas não, ninguém.
Havia um Alemão que namorava uma
Portuguesa. Procurou-a por toda a costa alentejana. Apanhou um escaldão. Ela
passava entretanto os seus dias em Aveiro, onde morava. Fora isso, davam-se
bastante bem."
Joana Bértholo in "Havia" (Ed. Caminho)
7 comentários:
Gostei muito e fiquei com vontade de ler o resto!
Faz sorrir =]*
estou absolutamente fã do teu blog... já não sei quantos posts e não consigo parar xD
Não conhecia mas adorei este pedacinho:D Próximo livro... "HAVIA"
Leeloo, mil obrigadas. Essas palavras deixam-me para lá de feliz.
Delicioso.
Acabei de conhecer o teu blog, e nem sei o que me torna corajosa mas tenho a dizer-te que me deixou encantada. Em poucos minutos passou a ser possivelmente o meu blog em português preferido. Obrigada, estou fã.
Uau, obrigada eu por um elogio maior do que tudo. :)
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