quinta-feira, 24 de maio de 2012

Havia uma escritora chamada Joana Bértholo

Um dia escreveu um livro chamado Havia e conquistou-me com os seus jogos de palavras, a sua graça, o seu mundo cheio de absurdos... e este conto.


"Havia um Alemão que namorava uma Portuguesa. Ele não falava Português. Ela não falava Alemão. Mas, fora isso, entendiam-se bastante bem.
O Alemão vivia na Alemanha e a Portuguesa vivia em Portugal. O Alemão era criteriosamente dedicado ao seu trabalho, aliás como dizem ser os Alemães. A Portuguesa não tinha dinheiro para viagens, aliás como dizem não ter os Portugueses. Ele não tinha tempo para visitá-la, ela não tinha meios. Fora isso, entendiam-se bastante bem.
O Alemão não apreciava receber cartas, que defendia serem um subproduto cultural obsoleto numa era às portas da extinção do papel. À Portuguesa não lhe agradavam telefones, pois pareciam-lhe aproximações perigosamente fálicas para se encostar à boca. Nenhum dos dois gostava de computadores. Utilizavam-nos somente para efeitos de pesquisa académica (ele) e compras online (ela). Mas apesar de não recorrerem a cartas, telefonemas ou e-mails, entendiam-se bastante bem.
O Alemão não apreciava a comida mediterrânica. Enjoava com o cheiro a azeite e a sua frágil compleição era pouco prestável a qualquer prato que não aqueles que a sua própria mãe cozinhava. A Portuguesa era vegetariana e não consumia álcool, o que excluía desde logo tanto a salsicharia como a cervejaria tão queridas ao povo Alemão. Fora isso, entendiam-se bem.
O Alemão era, como dizem que são os Alemães, de trato distante. Ou “frio”. Como se o clima dos países do Norte os contaminasse para lá da epiderme. A Portuguesa era, por seu lado, barulhenta e fervorosa. Como se o calor nos países a Sul lhes aquecesse o sangue e os tornasse a todos turbulentos. Aparte a altitude sónica dela e a escassez expressiva dele, davam-se mesmo bem.
O Alemão era matinal e acordava com as galinhas. Apesar de ser totalmente urbano e a galinha mais próxima estar frita num KFC. A Portuguesa, por seu turno, vivia para as suas jantaradas, em família ou com amigos, que nunca começavam antes das dez da noite, e se estendiam madrugada fora. No dia seguinte era raro vê-la a pé antes do início da tarde. Mas não era por nunca estarem acordados à mesma altura do dia que se iriam dar pior.
Certo verão, o Alemão foi obrigado a tirar férias. Ainda não tinha gozado qualquer período de férias desde que entrara naquele departamento, e os seus superiores começavam a estranhar. Perguntavam-lhe sobre a FaMíliA, se nÃo peNsaVa CasAr — que já estava Na AltUra (os Alemães usam letras maiúsculas nos sítios mais estranhos). Ele mostrou uma foto da bela Portuguesa, e contou como se davam tão bem. Nunca tinham tido problemas um com o outro. Os seus superiores sugeriram que tirasse férias para a ver, porque havia uma regra qualquer sobre o número de dias de férias, e eles queriam cumprir as regras.
Nesse verão, o Alemão que namorava uma Portuguesa viajou até Portugal. Procurou a Portuguesa nos sítios que lhe pareceram mais apropriados: os anfiteatros, as bibliotecas, mas não lhe ocorreu que era mais provável ela estar na praia, na esplanada, ou ainda a dormir.
Tentou ligar-lhe, mas ela não atendeu. Perguntou aos transeuntes, com a sua foto em punho, se a tinham visto passar.
Mas não, ninguém.

Havia um Alemão que namorava uma Portuguesa. Procurou-a por toda a costa alentejana. Apanhou um escaldão. Ela passava entretanto os seus dias em Aveiro, onde morava. Fora isso, davam-se bastante bem."


Joana Bértholo in "Havia" (Ed. Caminho)

7 comentários:

Patty*=] disse...

Gostei muito e fiquei com vontade de ler o resto!
Faz sorrir =]*

Random Blogger disse...

estou absolutamente fã do teu blog... já não sei quantos posts e não consigo parar xD

Diana disse...

Não conhecia mas adorei este pedacinho:D Próximo livro... "HAVIA"

juliette disse...

Leeloo, mil obrigadas. Essas palavras deixam-me para lá de feliz.

Juanna disse...

Delicioso.

Negrao disse...

Acabei de conhecer o teu blog, e nem sei o que me torna corajosa mas tenho a dizer-te que me deixou encantada. Em poucos minutos passou a ser possivelmente o meu blog em português preferido. Obrigada, estou fã.

juliette disse...

Uau, obrigada eu por um elogio maior do que tudo. :)