Hoje falámos de livros ao almoço, por entre o tupperware com as sobras do jantar da véspera (que isto da geração à rasca não é mentira, e para ter umas coisas é preciso poupar noutras). Falámos de livros e de sublinhar livros, e das frases-identificação, aquelas que lemos e nos levam a pensar "isto foi escrito para mim, isto é o que eu penso / o que eu sou / o que eu sinto".
Eu não sou de sublinhar muito (porque tenho aquela espécie de reverência para com o livro-objecto-santuário) mas lembrei-me dos diários do Miguel Torga. Porque são os livros mais sublinhados que eu devo ter e, atrevo-me a dizer, os melhores de memórias escritos em português (também não há muitos, é verdade).
É que o Torga tem tudo: páginas e páginas sobre a morte e o sentido da vida. Aquela angústia da ausência de um deus e da missão de criar do artista. O amor mais que umbilical à terra natal, à terra-terra, à urze. Os dias ou as sensações contados em poemas, que parecem tão espontâneos e fáceis de escrever como um sms, em Coimbra, na cadeia do Aljube ou em incontáveis viagens. O facto dele não se abrir com ninguém e ser meio avarento mas depois dar consultas gratuitas. O quotidiano retratado com tanta desenvoltura de escrita. Haver ali uma solidão enorme e um enorme medo de não conseguir viver a vida.
E agora quando chego a casa vou buscar os dois calhamaços que reúnem os diários todos, abro ao acaso o primeiro volume e sublinhado encontro isto:
"O homem, embora às vezes pareça o contrário, é modesto. Inventa dois mil caracteres e serve-se apenas de vinte ou trinta. Descobre a metafísica, o cálculo diferencial, a lógica formal, a botânica, mas fala quotidianamente de coisas triviais. De pão, de vinho e de pantufas."
E como me entusiasmo a ler umas frases aqui e ali outra vez, deixo queimar o jantar no forno.
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